A Batalha de Santa Elina II (Massacre de Corumbiara)

A Batalha de Santa Elina II (Massacre de Corumbiara)

Ariquemes, 23 de fevereiro de 2008

Confúcio Moura

Avistamos o acampamento. A derrubada aparada, no capricho, que se contrastava com a mata íntegra, que abraçava a derrubada, um abraço de desespero, árvores tristes, vivas e mortas. O acampamento lá em baixo, beira do Igarapé torto, embocada em curvas, lá estavam os barracos, acompanhando o riacho, que num instalo, dei a ele o nome – de Igarapé das Almas.

Em Colorado, dividimos o grupo, devido a extensão do trabalho e avançado da hora.  Nilmário, Olavo e Osni ficariam em Colorado do Oeste, visitariam os presos, os internados, falariam também com o Juiz da Comarca e com o Comando da Polícia Militar. Padre Roque e eu (Confúcio) deveríamos visitar o local do incidente, registrar os fatos, tirar fotografias e assim foi feito.

Pegamos o caminho de Santa Elina. A Toyota foi cedida pela Prefeitura de Vilhena e a companhia do Vereador Claudinei Marcon, da cidade de Corumbiara. O local da tragédia está a 85 quilômetros da cidade de Colorado. A 10 quilômetros da fazenda, encontramos carro utilitário, cheio de gente. Saí do carro e dei ordem para parar.  Era tarde, 17,30 h, portanto 36 horas depois do conflito, o motorista disse que estava a serviço da Prefeitura de Corumbiara, que tinha vasculhado a área a procura de mortos ou feridos.  Encontraram uma mulher com duas crianças e dois homens que estavam com medo de saírem do mato.  Todos estavam com fome, trêmulos, sem comer há dois dias, roupas rasgadas, apavorados, olhos arregalados de pavor.

A Sra. Vera Lúcia, mãe das crianças, disse que o tiroteio começou às 5 horas da manhã, foi salva pela Graça de Deus, pulou no Igarapé das Almas, torto e necessário, o barranco e curvas da grota foram trincheiras, ela subiu o riacho com os meninos nos braços, uma força tão grande, tudo escuro, não sabe de onde veio tanta energia para pular paus caídos, poços d’água, pedras, rente ao barranco, sem saber onde pisava, a mata escurecia ainda mais, nem lua, nem estrelas. Ela se contradisse, que a PM não tinha visitado o acampamento, depois que os PMs foram recebidos um dia antes, com hinos e louvores. A contradição é justificada, ela não tinha cabeça para detalhes, fez muito e bravamente sair com vida, salvar filhos, exausta, desumanizada, não acreditava em ninguém, medo da nossa equipe. O motorista apresentou vários documentos de agricultores, alguns queimados parcialmente. Uma espingarda de dois canos, culatra queimada, recolhemos tudo, para mais tarde deixar em Colorado.

Bem perto da batalha, a guerra santa de irmãos, o fogo amigo, que virou inimigo, há 1,5 quilômetros estava o acampamento da Polícia Militar, deserto agora, mas, os escombros das barracas, cozinha, alojamento de apoio: uma ponta da Santa Elina beirava a estrada, divisa, uma tira de 300 metros de capim, sem cerca, placas ou marcos divisórios. Não havia gado.

Deixamos o carro há 300 metros da derrubada, logo à frente encontrei dois colchões de espumas enrolados e amarrados, seguimos a picada, mais uma rede abandonada, suja de sangue, com uma vara enfiada nos punhos, dando a entender que serviu de padiola para transporte ferido.  Saltamos duas pinguelas, centenas de troncos caídos, galhadas ainda com folhas, a derrubada estava fechada e sem queimar.  É difícil andar em derrubada nestas condições. Um sobe e desce sem fim. Dói as pernas, enfraquece o corpo e não rende o serviço da caminhada.

Conversa no mato é que a derrubada era de 100 alqueires. Achei exagerado. Mais galhos e troncos, corpo arranhado, roupa suja, suor fedido.  Um isqueiro no chão, roupas aqui e ali esparramadas, um pé de sapato, outra de sandália havaiana, e por fim, toda a tralha de uso comum esparramada na beira do caminho ou agarrada nos troncos.

Por fim chegamos ao local. 18 horas em ponto. Sol ainda de fora. Analisei a topografia, a disposição dos barracos, protegidos pelas copas das árvores, cuidadosamente deixadas ali, para sombrear o acampamento, para a defesa estratégica, apenas raleado o mato fino.

O acampamento, apenas quatro pontos para chegar ou sair dele.  A picada por onde viemos. Outra picada para o fundo da derrubada, que dava acesso a um morro. O leito do “Igarapé das Almas”, rumo à nascente ou desembocadura. As árvores em pé serviram de escudos vivos. As árvores também estavam baleadas, agonizavam com inúmeras perfurações de balas nas. Estas ao menos ficaram de pé.  A derrubado inibia a fuga. Dificultava o movimento de pessoas. A galharia ainda verdolenga, os troncos, impediam o movimento livre de qualquer animal. Os barracos no todo ou em parte queimados. Restos de alimentos jogados e esparramados.  Fraldas de neném. Roupas íntimas de mulheres. Uma bicicleta queimada.  Armação de óculos. Pedaços de rádio, radiolas, pilhas, remédios, latarias.  Ainda vivos, no local, dois galos, um cachorro que lambia restos de comidas.  Um cenário de horror. Bebi água do Igarapé das Almas, fria, cristalina, mineral.

A batalha foi difícil para os dois lados. Havia jiraus nas árvores, onde os seguranças do acampamento ficaram na espera.  Uma visão privilegiada do alto do galho. Um jirau como que se faz para esperar bicho do mato. A batalha foi difícil para os dois lados. Ninguém ganhou e ninguém perdeu. Guerra inútil.  Do outro lado do igarapé, foram deixados montes de porretes com pontas afiadas, dispostos ao longo da ribanceira. A coisa foi feia.

Não dá para fechar o assunto hoje. Próxima semana, mais um capítulo.

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