Meu corpo é minha casa dentro daquela casa. E fora dela também. Tenho em mim o seu concreto, sua telha de barro, o seu silêncio absoluto nos finais de semana. Me desapeguei dela, como se desapega de um ente querido morto, que o só tempo pode acalentar.
Tirei esta foto acima, sentado no terreiro da casa que vivi (vivemos) em Ariquemes, por 42 anos. Foi um longo tempo para que eu me integrasse a ela, nela ecoa a nossa voz, o tilintar do prato e talheres, do cheiro da comida, dos pombos pousados no muro, dos cachorros que nos acompanharam. Nela ainda vejo as últimas batidas do coração da minha sogra, que ali morreu naturalmente e na sala foi velada.
A casa me entendia e eu a entendia mais ainda. A mesa da sala feita por João Capelete, em prancha única de cerejeira, pesada, concreta, imutável. A escadaria com 19 degraus para o andar de cima, em madeira de maracatiara, que trazia desenhos da própria genética florestal. Foi construída com esmero pelo carpinteiro Arnildo Schosller, nunca deu nenhuma folga nos seus encaixes. Os sofás dividindo os ambientes. Uma cadeira de fazer massagens. A cristaleira que vem rolando de avós até aqui. Xícaras leves, frágeis, com vidrarias que traziam apegos e lembranças.
A casa me entendia. Quando faltava a energia da rua, sem lanterna se achava a vela na prateleira. A cisterna no fundo, nunca havia secado, água pura e cristalina, que nos hidratou por quase meio século. A casa fica na Alameda do Piquiá, 1577 – Setor I de Ariquemes. Na calçada plantei dois pés de oitizeiros, únicas árvores da rua. Na alameda inteira, apenas, outras três moradias ainda habitavam moradores pioneiros da cidade, restantes, transformaram-se em lojas de comércio ativo.
No quintal, pés de cocos, acerola, horta, flores. Os passarinhos também moravam ali, cedinho era um festival de cantoria. Na casa, as filhas cresceram e marcaram a vida ali. Nem preciso dizer mais nada do apego, do carinho que a casa tinha por nós e nós por ela. Com a aposentadoria da Alice optamos por vendê-la, já que ela não poderia mais viver sozinha no casarão, enquanto o resto da família já havia tomado seus rumos próprios.
Foi um choro geral. Não imaginava que dela se tirasse tantos livros, documentos vencidos, jornais velhos, roupas imprestáveis, caixarias – cada coisa, aparentemente inútil, teve uma história em seu tempo. Breve será demolida para se transformar num imenso galpão, e mais uma nova loja fincará raízes no lugar. A casa nunca desaparecerá de mim, nunca será demolida, porque ela faz parte do meu corpo e da minha história.