Você já pensou na tortura? Em ser espancado até o limite da vida? Preferir a morte ao sofrimento e a dor? A ficar privado de água. Receber choques elétricos. Saco plástico enfiado na cabeça, justo, atado ao pescoço e sentir o corpo fraquejar, arroxear, o pensamento sumir e depois desmaiar?
José Porfírio estava no roçado, num singelo sítio, manhã cedo, como de costume, sol ainda por nascer, apenas o barrado do dia, ele agarrado ao pé de mandioca, arrancando-o à força. Nem mais se lembrava do que foi. Do guerrilheiro vigiado e procurado. O tempo passou. Amigos não os tinha mais. Agora, era um outro mundo, um outro homem. O da solidão e do esforço para esquecer o passado. Dez anos depois da fuga.
Arrancou a mandioca. Com o facão estava fazendo o acabamento do serviço. Levantou a vista, não acreditou. Estava cercado de policiais. Não ouviu o latido do cachorro. Nem os passos destes homens misteriosos. Jogado no chão, algemado, capuz na cabeça. Perdeu a noção do tempo e direção.
A prisão de Porfírio foi um trunfo extraordinário para a ditadura brasileira. Foi uma conquista, como uma copa do mundo. Foi comentário geral “agora sim, pegamos o homem e ele vai botar pra fora muita coisa”. Ele foi levado para as celas da Polícia Federal de Brasília. Ficou incomunicável por meses. Submetido a todo arsenal de torturas. Nesta época a ditadura tinha se especializado bastante. Havia tortura bem mais moderna que o choque elétrico e o pau-de-arara.
O inquérito correu sem a presença de advogado. Feito como bem queriam “os homens”. Porfírio reduziu-se a uma simples coisa, a um corpo sem alma, a uma alma sem corpo, a um nada ambulante, a um bicho acuado, medroso, arregalado. Ele era uma massa de dor. Perdido em si e no mundo, como se não existisse.
È isto, meu amigo, estamos aqui num exercício ambíguo e duplo. Vivendo a morte alheia e a nossa morte. Estamos pré-vivendo, ou, quem sabe, pré-morrendo? No mais é pressentir a dor, o homem no seu limite, a ter que dizer o que não fez, a assinar o crime que não cometeu. E se crucificar, bater os pregos nas próprias mãos, pelo simples crime de pensar. É crime pensar? Quem manda no seu pensamento? Quem manda no seu coração, na sua preferência, no seu amor, no seu sonho ou no seu ideal?
Basta-nos a dúvida da nossa morte. Como será ela? Quando? Ela nos ilude a todos, ainda assim, achamo-nos espertos e olhamos os outros, que serão colhidos primeiro, fica a dúvida, não é a hora de arrumar os meus papéis, as escrituras, os documentos, herança, recados importantes, dívidas por pagar ou contas a receber? A dizer alguns segredos ou a pedir perdão pelo que não se disse?
Uma advogada humanista, ofereceu-se para a defesa de José Porfírio. Alegou direitos dos animais selvagens, que não se pode torturar o burro, o cão, o gato. A dizer da falta de provas. Ao vazio do processo sem uma boa instrução. Feito heroico. Tirou-o das grades. Do seu próprio do bolso deu-lhe dinheiro curto, apenas para passagem e lanche, levou-o à rodoviária de Brasília, com destino à Goiânia e de lá seguiria para Trombas e Formoso.
Só tem uma coisa. E bem importante. José Porfírio não chegou à Goiânia. E o que é pior, nunca mais foi visto. Transformou-se num fantasma semivivo e semimorto, um quase – quase, um sem cova, ex-sem terra, e morto e vivo. Foi mais um desaparecido brutalmente. Pelo nosso glorioso Exército.
Ah! Duque de Caxias, Floriano, Hermes da Fonseca, General Lott onde estás que não me respondes (paródia do poema de Castro Alves). Que neste manto de vergonha não te escondas. José Porfírio foi solto, respirou a liberdade, retirado do ônibus, assassinado.
Em 1995, não me lembro o mês, na escala do avião no aeroporto de Goiânia, peguei o Jornal O Popular. Por acaso encontrei uma reportagem que me prendeu atenção – sobre a família de José Porfírio. A velha viúva vivia alongada num tapiri às margens do Rio Paraná, tinha medo de gente, pobreza extrema. Recortei o jornal, era Deputado Federal, fiz um discurso na tribuna da Câmara, logo fui aparteado por José Genuíno e mais outros ex-guerrilheiros (atuais Deputados) que complementaram com muita emoção o meu discurso.
Remeti o texto do jornal ao Governador de Goiás Maguito Vilela, fiz um relato da história e dos fatos, clamei por justiça tardia. Igual teor para o Presidente da Assembleia Legislativa Deputado Luiz Bittencourt, que mais tarde, os dois vieram a ser meus colegas de parlamento. A minha indignação transformou-se em Lei em Goiás, concedendo uma pensão vitalícia à família de José Porfírio. Foi-lhe dado o nome de um dos pavilhões do prédio da Assembleia.
Vivi a vida de José Porfírio quando tinha 20 anos. Sabe como? Eu era aluno da Escola de Sargento da Polícia Militar, 1968, ano de aço, duro, difícil. Junto com o Exército fomos a Trombas e Formoso (Goiás). A missão era um ACISO (ação civil e social). Fazer o bem aos sertanejos, mostrar que a Polícia e o Exército não eram bichos papões. O dentista extraía dente. O médico media a pressão arterial. Fazíamos visitas, ajudávamos em alguns serviços, distribuíamos cestas básicas. A ordem era essa – causar boa impressão. O povo desconfiado não se abria. Ninguém apagava da cabeça deles a liderança de José Porfírio. Enquanto o Exército fazia o lado bom, escondido fazia o lado ruim. Era o jogo do bem e do mal. Do certo e do errado. Do céu e do inferno.
“Sigo sem pressa. A morte exige trabalho, trabalho lento como quem nasce” (Afonso Romano de Sant’ana).,
Ariquemes, 15 de março de 2008
Confúcio Moura