Confúcio Moura, junho de 2001
Veja bem, esta crônica tem 20 anos. Vou publicá-la agora. É tão atual, como se 20 anos fosse ontem.
Finalzinho de maio de 2001. Um pouso rápido, em Rio Branco do Acre, para baldear pessoas e abastecer o avião. Florestas e rios a se perderem no infinito das vistas. Movimentos rápidos dos serviços no entreposto. Li jornais amassados e relidos. Sentou-se uma mulher ao lado. No meio ficou a cadeira vazia. Mexeu-se para os lados para acomodar o corpo à poltrona incômoda. Ajustou-se e fechou o cinto. Aquietaram os olhos e as pálpebras cerraram. Virei a face indiscreta com o olhar vesgo.
Ela mexia os lábios em contrita reza. Quem sabe, por medo de avião. Uma mulher estranha. Olhos fechados para ficar distante.
Sei lá como perguntei:
– Está indo pra Manaus?
– Não, para Porto Velho.
– Mora lá?
– Não. Vou a serviço.
Demorei um pouco para procurar assunto. Especular da vida alheia dá gosto de aventura. Tem coisa que não se pode falar. Pequena pausa insisti.
– O que a Senhora faz?
– Consultora do SEBRAE
– Muito importante, não é?
– É sim
– O que fez em Rio Branco?
– Curso para juízes.
– Meu Deus, juízes?
– O que ensinou para eles?
– Mitos e arquétipos.
– O que é isso, moça?
Começou a falar com a desenvoltura da mestra. Deixando para trás a gostosa melodia da fonética mineira. O arrastado sotaque da viola que plange. Sons da região pé-de-serra, que não tem mundo exterior que possa mudar. A fala carrega a fisionomia da terra onde se nasceu. A mineirice é incomparável, junta a beleza da fala, os gostos especiais dos temperos, o machismo histórico e raça típica, apurada por 500 anos. Não me canso de defender que mineira é raça pura. PO.
O tempo e a natureza o ajustaram a circunstância. Subir e descer ladeiras. Tanger boiadas. Comprar e vender mercadorias no lombo de burro. Faiscar o ouro e a esmeralda. Adormecer a mente nas visões ondulantes das montanhas. Sentar-se sobre os calcanhares, com a mão no queixo e se deixar relaxar por horas. Tudo junto fez o PO mineiro:- Puro de Origem.
Mineiro é desconfiado, fala pouco e deixa o resto para os ouvidos. O fogão à lenha. O lombinho de porco com recheio. A pele torrada. O arroz com pequi. Deixo de lado os cafezais em flor, a vaca de leite e as centenas de igrejas que guardam a devoção do povo de Minas Gerais.
Mitos e arquétipos para os juízes? Era o que me faltava.
Os homens criam os mitos, hábitos que viram modelos, como os quadros de arte. Cada um desenha do seu jeito e tudo fica constituído como uma verdade. Os usos e costumes, o padrão burocrático, a indiferença humana, a imponência da beca de seda, o martelo no júri, a venda nos olhos da deusa justiça, a última palavra.
Vejam como são os prédios dos tribunais?
O Fórum da Comarca. Impõe-se respeitoso como palácio e majestade. A arquitetura de fora e de dentro mostra a figura mitológica da justiça. Como o Deus que não erra. Que está acima das fragilidades humanas. Deus-Homem que julga os outros homens, o zé-povinho, os pecadores, impõe novos destinos como a do céu e inferno. Coisa do inconsciente individual como pregou Freud e do inconsciente coletivo. O dragão, o tucano ou leão do imposto de renda como estudou Jung e todos estes símbolos que nos fazem crer e interpretar a imaterialidade das coisas.
O avião sacudiu-se na nuvem, turbulência devido à densidade do ar.
Qual é seu nome?
– MP
– Está na moda. ACM.FHC. JB. MT.
– É MP mesmo?
– É sim.
– A minha mulher também é P. Mas, de Paula. Paula que não é de BH.
– Tem muito P em Minas.
– O seu Jung é o criador dos mitos e arquétipos coletivos. A influência do todo sobre o particular. Sobre as organizações. Sobre as condutas. Não é mesmo?
… (silêncio)
– Viaja com frequência pelo SEBRAE?
– Viajo. E você quem é?
– Médico. Deputado. Moro em Ariquemes.
– Conheço Ariquemes. Já dei cursos lá. SEBRAE IDEAL.
– Sou de Minas. BH. Já lhe falei. E você?
– Sou do Tocantins. Nasci em Dianópolis.
– Dianópolis?
– É sim. Dianópolis.
– Conheço Dianópolis. Já dei curso lá. SEBRAE IDEAL.
– Você conhece o mundo todo.
– Conheço boa parte.
– Mais cidades em Rondônia?
– Porto Velho, Cacoal, Ji Paraná, Rolim de Moura, Vilhena…
– Pode parar. Mulheres da terra e dos ares. – Você vive voando. Ainda tem medo de voar?
– Já me superei. Fiz auto-análise. Só um frio na barriga.
– O lado da luz
Mostrei aos juízes os mitos criados por eles. E que tudo pode mudar, ser diferente. Não é tarefa fácil mudarem-se mitos. Os mitos viram culturas. Falei do lado sombra de cada um.
MP desceu primeiro do avião. Perdi-a de vista. Foi-se embora, a jogar sementes neste solo arenoso, cheio de mitos e arquétipos, que crassa e prospera na consciência humana. universalmente.
Foto: Ilustração (Pixapay)