Assistir uma cidade nascer, é como o nascimento de um filho. É construir história e ver as gerações se cruzarem, entre mortos e nascidos incrustam-se nela memórias. É a memória que basta e fica. Porque a cidade é sua gente. Nada mais que isto. A sua construção exige um esforço coletivo.
Quando tudo era silêncio e noite adentro, o sono foi perfurado por pensamento agudo e voltei no tempo, numa viagem longa, a de reviver fase a fase, mês a mês, o nascimento de Ariquemes, filha querida, de muitos pais e mães. Assim como ela, outras ou quase todas seguiram o mesmo propósito, todos atrás de um plano comum, ver a cidade crescer e crescermos com ela, uma expectativa que pode dar certo ou não.
Ali tem um rio. As cidades às margens dos rios têm compromissos com suas águas e tem uma gratidão especial como se o rio abençoasse o nascimento, como num batismo coletivo. Fiquei brincando num tabuleiro vazio, jogando no imaginário, teci o roteiro reverso e foi se erguendo como alguma coisa impossível.
Ela veio de uma escolha estratégica do governo militar. Corria o tempo, a década de setenta. Brasil campeão do mundo de futebol, euforia de crescimento. Amazônia mais uma citação que uma região, mais uma profundidade florestada, bichos, índios e degredados da sorte, que um Brasil de verdade.
O desamparo e o silêncio. Os movimentos feitos pelos rios. Fronteira desguarnecida. Fincada como prioridade a sua integração. Abrir a Amazônia para boias-frias e pequenos produtores do sul e sudeste, escorraçados pela mecanização da agricultura. Foi assim mesmo. Vieram todos. Os programados e os não programados. Melhor assim, dar terras aos brasileiros que deixá-los à cobiça internacional, como se imaginava, para roubar as riquezas minerais abundantes e traficar sementes e animais.
O homem carrega em si o espírito de conquista. E tudo seria milagroso. O povo atendeu o chamado oficial, veio como retirante. Cadastros feitos pelo órgão fundiário, julgados aptos, carga às costas, pessoas peregrinavam trilhas difíceis, para encontrarem na mata fechada, o “lote” que lhes seriam doados. Tudo era bem mais difícil do que se imaginaria inicialmente.
E a cidade foi demarcada. Mapeada por arquiteto. Algo fantasioso. Tratores abriram ruas, o serviço bruto, a derrubada, a coivara, o fogo, o barraco coberto de lona, a cisterna, o banheiro de buraco, o profeta nada tinha dito que seria assim.
Era um entusiasmo insano. Mosquitos impiedosos rondavam as cabeças, zunindo fino, pousavam sobre os corpos ainda lisos e sadios, não tardava os corpos feridos, a coceira renitente, as pernas em ralo, era o homem se transformando num batismo desafiador. Escondido estava o anofelino, que transmitia a malária, doença endêmica, tal uma guerra civil, matou muita gente.
Mesmo assim, a cidade se ergueu. Do seu jeito e com sua própria filosofia as casas tomavam formas. As ruas endireitaram-se. Ergue-se o Banco do Brasil que autorizado despejou dinheiro para os colonos, como bicas de nascentes. O plantio do cacau que foi a base que era para dar certo, não deu, e foi se diversificando, a cidade por si tomou outras alternativas.
Da guerra inicial se edificou a cidade. Não mais se necessita mais daquele desafio. Ela vai seguindo seu destino. Ajustando-se aos tempos. Não ao choro, e sim à glória. Ela se transformou numa foto especial, sem cara definida, sem dono. Ela é o que é pela sua natureza, que se molda com o homem e suas novas necessidades.