Ariquemes, 8 de março de 2008
Confúcio Moura
Eu era menino de 12 anos, mas, lembro-me muito bem. Depois da renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart começou a estremecer o clima político no Brasil.
Um movimento revolucionário, ainda surdo, mas, que havia embrenhado na alma do povo pobre, plantado em Pernambuco, por Francisco Julião e José dos Prazeres: AS LIGAS CAMPONESAS. Julião havia rodado o mundo, Cuba, União Soviética, China, Bulgária. Voltou refinado e pronto para liderar.
Surgiram almas penadas (Clodomir, Gilvan, outros), jovens bonitos, intelectuais, conversadores, no sertão profundo de Conceição do Norte (aquele tempo ainda era Goiás, hoje Tocantins). E eles se remexiam por Dianópolis, Almas, Taipas e cidadelas perdidas nos confins brasileiros, na confrontação de quatro Estados – Tocantins, Bahia, Piauí e Maranhão.
Movidos por esforço incomum, de rolarem de cima, das cidades grandes, rolarem até o mundo tosco e invisível. Só o espírito heroico, revolucionário foi capaz de tanta aventura ou loucura de jovens eufóricos que acreditavam mudar o País e transformá-lo numa mágica Cuba.
Tinham jipe, faziam reuniões com pequenos grupos de sertanejos. Falavam de política, de revolução, de governo popular, que eles tinham força, que deviam se unir e formarem um grande exército, como o exército de Mao Tse Tung, e que todos teriam terra, direitos e mais direitos.
Os princípios eram estes: A política é uma guerra sem derramamento de sangue, e a guerra uma política com derramamento de sangue. Somos a favor da abolição da guerra, não queremos a guerra. Mas a guerra só pode ser abolida com a guerra. Para que não existam mais fuzis é preciso empunhar o fuzil. O poder político nasce do cano da espingarda (Mao).
Abílio Wolney, velho e desconfiado, foi Deputado Federal no início de século XX, avisou aos amigos: estes moços são comunistas. O sertanejo tinha medo de comunista. Comunista era besta-fera, era o tinhoso em pessoa, coisa maldita. Comunista comia criança viva.
Movimento igual havia em Pernambuco, Rio Grande do Sul, Goiás e Acre. Eram líderes das Ligas Camponesas que tinham na cabeça a tomada do poder central, a partir das bases populares. A revolução de baixo para cima. As Ligas foram mães dos atuais movimentos sociais, como o MST, Liga Campesina, Liga dos Trabalhadores Pobres. Mudaram-se os nomes, mas a essência é a mesma.
José Porfírio era diferente. Ele era um camponês que tinha nascido meio aloprado. Sem nenhuma formação política, começou a arregimentar agricultores sem terras, incentivar invasões nas regiões de Formoso e Trombas no Estado de Goiás. A encarar no peito e na raça a ocupação de terras improdutivas. Ninguém o havia ensinado a fazer nada, saiu de dentro dele esta ira contra o sistema, com isto, ficou odiado por fazendeiros e pela polícia.
A palavra “camponês”, nos ouvidos dos militares, doía mais que apito de trem, que grito, que buzina, que trovão. Camponês era o subversivo. Bem disse Josué de Castro, com uma profecia incrivelmente acertada aos dias atuais “No Brasil os cidadãos estão divididos em dois grupos: o grupo dos que não comem e o grupo dos que não dormem: não dormem com medo dos que não comem”.
Não demorou a turma revolucionária descobrir o talento de valentia de Zé Porfírio. Foi mandado pra Cuba, para receber lições, um verniz de socialismo e técnicas de guerrilhas, liderança e mobilização popular. O cara voltou fino no serviço. Virou uma onça do sertão. Pegou nome e fama. Quando foi em 62 saiu candidato a Deputado Estadual pelo PTB/Goiás e veja bem, foi eleito.
Chegou a Goiânia, para a posse, sem paletó, chinelo de dedo, chapéu de palha na cabeça, desajeitado, cigarro de fumo de rolo no canto da boca, cuspia de esguicho no tapete vermelho, arrotava alto em qualquer lugar, nem sabia o que iria fazer. Ficou ali reparando o jeito de deputado, não gostou, mas, ficou até dar tempo para se acostumar. Não sabia discursar, nem ler direito, nem fazer projeto, sabia apenas dizer que o povo pobre tinha que ter terra para produzir. Que terra é vida, como água e o ar.
O José Porfírio virou um Deus do povão sertanejo. O movimento alastrou-se em várias cidades brasileiras. Clodomir, sociólogo, professor, foi deputado estadual em Pernambuco, largou tudo e foi pro batente militar a causa e o que achava justo. Tinha assistido o espetáculo da eleição de Pelópidas Silveira para a Prefeitura do Recife, um engenheiro sem dinheiro no bolso. E o melhor de tudo, Pelópidas foi um exemplar administrador público.
Estourou a Revolução de 64. O Exército caiu a campo. A Revolução de 64 esqueceu o Brasil e virou-se contra os brasileiros. Especializou na arte da tortura, da judiação, do assassinato. Não deu outra, o pessoal de Conceição de Norte, Clodomir, Gilvan e companheiros espatifaram-se no mundo, perseguidos pelo Exército como agulha em palheiro. Alguns foram assassinados ou presos. Outros caíram no Rio Manoel Alves e desceram água abaixo e salvaram-se pela Graça de Deus. Embrenharam-se pelos gerais, a pé e sem destino, até saírem na Bahia e fugirem para o exterior. Clodomir foi um destes, que conseguiu a ressurreição e foi parar em Honduras.
José Porfírio foi o mais procurado. Rapou o pé na estrada, disfarçado de mendigo, que não foi difícil fazer o papel, saiu de Goiás e foi se esconder em Riachão no Estado do Maranhão. Mudou de nome, casou-se de novo, plantou mandioca e viveu disfarçado por 10 anos. Nem notícia da família antiga. A primeira mulher e os filhos não aguentaram a perseguição, prisões, dois filhos enlouqueceram, outro sumiu. A velha esposa fugiu para as margens do Rio Paranã, montou barraca e ficou perdida na solidão, pobreza e silêncio.
O mundo viu o resultado destes movimentos. Viu países entrarem de boca neles. Viu como saíram e como estão alguns ainda persistentes em suas ditaduras. Digo-lhes com pesar, nunca morrerão ao todo. Agora mesmo na Rússia o candidato comunista ainda teve 15% dos votos. Perdeu feio. Mas, eles relutam em sobreviverem, teimam, até mesmo o Oscar Niemayer ainda é comunista aos 100 anos. Ninguém tira da cabeça de um fanático o seu pensamento. O melhor é tê-los por perto, livres e democráticos e sempre perdendo eleições. Uma coisa é certa – eles morrem e renascem. Os anarquistas são mutantes naturais.
Juro para vocês que na próxima semana vou contar o que aconteceu com José Porfírio, depois que foi preso e transferido para Brasília. E as notícias da velha esposa no ano de 1995.