Cruz das almas

Cruz das almas

No alto morro, quem sobe ou desce não sente o peso da gravidade, muita coisa existe sem que se sinta a presença, vai se vivendo mistérios, absurdos evidentes, como a cruz fincada, visível por quem passa, um capão de mato em volta, mais longe, mangueiras do Sítio Cavalcante em São José do Duro.

A estrada de passagem, sítios e fazendas ermas, vai se bipartindo, de quando em quando, até que cessem por completo, em vales, riachos e morros.

A Cruz das Almas, por certo, homem ou mulher ali sepultada, sem nome de referência, sem o tempo definido, a cruz sobre o túmulo. A cruz e o fenômeno luminoso, como uma tocha de fogo percebido nas noites. E tudo era assustador. O pecado não confessado poderia ser a causa. Alma condenada presa ainda ao solo tentando evanescer. Um buraco negro em desespero.

Havia silêncio profundo ao entardecer, medo crônico nos tropeiros que passavam. Sertanejos em movimento, carregados de crenças e histórias da Cruz das Almas – como ali morasse um espírito ativo, por certo vivo, por certo morto, por certo aflito, consagrando-se como um divisor da cidade.  Por tudo um medo incontido fluía como o vento, açoitando as folhas das macaubeiras, seus cachos pendurados, seu amarelo, seu cheiro e a vida presente assentada na cruz como o sobrenatural.

 A cruz tinha referência, o fogo, que se via de longe. Ninguém se atinava para um acontecimento prático, como efeito da luminescência produzida por bactéria e outros micro-organismos, não seria a ciência que viria explicar o mistério da Cruz das Almas, porque ali ninguém explicava o científico e sim o que lhe era visível e apavorante.

 Havia sofrimento na cruz.  A coruja com seus imensos olhos fogo, mantinha vigília na Cruz.  Morcegos pendurados em pencas, cabeças pra baixo, asas abertas, nos braços da cruz, bandos de pombas verdadeiras pousadas nas copas das árvores, o movimento brusco dos calangos, teiús gigantes, havia terror acumulado, movimentos bruscos ameaçadores, tudo poderia ser astucioso, apavorante. Havia o fogo iridescente em tudo.

Da Vila do Duro à cidade de Dianópolis carregava o enigma do fogo andante, em fachos que imitavam seres humanos em movimento. Era a luz humana.  Uma forma de energia do lugar. A luz que se tinha por dentro, cada um com sua cruz das almas e seu fulgor.  Cada dianopolino tinha sua transcendência própria.

A cruz não tinha idade, como se fosse a própria eternidade, não teve começo conhecido, só desapareceria com a extração do seu ouro como um filão profundo.  Tudo deveria ser removido.

A cidade não subia o morro, ficava contida no seu quadrado, o cruzeiro e a cidade mantinham-se distantes, uma misteriosa sentença, a luz do túmulo repelia o crescimento, a comunidade movida por laços estreitos de crenças e sangue.  O mesmo sangue de um corria na veia do outro.

 De geração em geração, de tanto ver falar, de tanto ver a luz na noite sobre a cova, de tanta dúvida sobre o morto, a cidade foi-se acostumando com o fenômeno sobrenatural. Como se tudo fosse uma ilusão dos tempos e dos costumes.

   Só aquele que carrega a dor dos mortos pode entender a cruz das almas. O fogo-fátuo se apagou e a cidade cresceu. Eu nunca vi a luz bruxuleante com meus olhos, mas, ela existiu, de verdade.

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