Confúcio Moura
12 de agosto de 2005
A buzina do padeiro bateu à porta “pam, pam, pam”. Som inconfundível de todas as manhãs. Vá lá menina e pegue o pão. De olhos fechados ela ia e pegava o pão. A gente se acostuma com as vozes, as buzinas. As pessoas de todos os dias, as dores nas juntas no frio, a hora de acordar, é o que se chama de reflexo condicionado. No mais, o homem conta com a sua imensa capacidade de se dar diante do imprevisto e de se defender quando puder. Um outro reflexo, o de fuga ou ataque.
O super-homem não temia a morte e nem a doença porque era super-homem, simplesmente por isso e pronto. Cumpria as recomendações médicas e de tudo que lia no universo de revistas e jornais. O tema preferido era a boa qualidade de vida. Não fumar, usar com moderação as bebidas alcoólicas. Uma taça do vinho tinto ao jantar. Só uma. E mais nada. Um defeito incontrolável, o de comer mais rápido que os outros. Prometia comer devagar e não conseguia. O peso aumentava mesmo achando que comia pouco. Aderiu como um apaixonado aos light e diet.
Certo dia, ainda cedo, a visão turvou-se em noite absoluta. Encharcou-se em cântaros de suores e desmaiou no banheiro. Também pudera, esgotaram-se as ultimas moléculas de açúcar no sangue. Faltou o combustível para a vida ativa e foi-se ao chão como uma jaca. Neste dia o super-homem venceu o seu limite. Contrariou as recomendações de idade e tempo, depois de duas horas e meia de corridas, bicicleta e natação, verdadeiro triatlo. Dia seguinte esqueceu-se de tudo e seguiu sua maratona. Queria espantar o fantasma do sedentarismo. A buzina sempre toca. Basta ouvi-la reflexamente.
O super-homem não respeitava os seus limites. Queria tirar de vez o peso da consciência. Engordar jamais. E a dedicação absoluta seria o atenuante ao seu peso de consciência por comer tão velozmente. E o pior ainda engordar apesar de todos os esforços. Nem gordo e nem desleixado. Ou com sequelas das doenças crônicas pela falta de exercícios físicos. E assim continuava o seu ciclo perverso de desorganização. Enquanto, por dentro, os seus sistemas reagiam silenciosamente.
O super-homem não morre e nem se abate, está ali no pódio, com todas as suas idades. Todas as suas fases que a vida nos presenteia. Impassível sem descer um único degrau nos seus objetivos. E um espartano hábito de autoflagelação. Mas, queria ser assim. E esta luta silenciosa que se trava dentro do mesmo ser, como um conflito permanente, entre um prazer e o seu correspondente sacrifício. Ter saúde no seu limite certo e ter que desmaiar pelo excesso. Como também a força incontrolável por ingerir grande quantidade de comida, velozmente, invisivelmente e se justificar que não comeu tanto? E de tão forte chegar tão perto da fragilidade mais bruta.
O que faz o homem e o seu paradoxo? O que faz o homem viver tão conflitivo dentro do seu próprio sistema de vida? Porque o limite certo é bem mais tranqüilo e suave. Como a brisa é suave. A harmonia das cores é mais suave. Ser natural e conveniente é bem mais pacifico. Isto tudo de desarmonia não estará tão perto ou já ter chegado ao domínio da insanidade?
E ele que nada sentia a não ser as dores da consciência, foi alertado pelo seu outro despertador: o da rotina. A rotina não conta e nem vale. Além de capengar em desvarios pela solidão incompreensível da sua falta de amor. Nem falo aos outros, mas, o amor que se deve ter por si mesmo. O respeito ao seu próprio direito de viver em harmonia com a natureza e bem mais importante, a sua própria natureza interior.
E agora está recomeçando, depois que se viu em ameaça, na fase mais original do ser humano – a do prazer oral. E se deixar levar sem a ousadia de escalar os píncaros do Everest. Nem de se expor às geleiras da Antártida. Não se atreverá mais aos ralis dos sertões. Nem de atravessar a nado o Canal da Mancha. Há de se contentar em ser um simples mortal. Com suas fraquezas naturais. E que inclui a de ser hipertenso. Assim, sem mais e nem menos. Hipertenso. Mesmo que isto lhe seja estúpido e inaceitável para quem se julgava ser bem acima das mazelas humanas.