A Batalha de Santa Elina III (Massacre de Corumbiara)

A Batalha de Santa Elina III (Massacre de Corumbiara)

Ariquemes, 1 de março de 2008.

Confúcio Moura

Era madrugada. O pessoal do acampamento tinha meta a cumprir: defender a posse da terra. A menina Vanessa Santos da Silva, de 7 anos, amanheceu bem diferente. Agarrou na perna da mãe e não queria soltá-la. Tinha medo, não sabia o motivo, mas, tinha premonição de coisa ruim.

O pelotão da PM tinha se formado. Recebido ordens, seguiu em grupos. Cada um deles com seu comando instruído. Pela mesma picada estreita, em fila indiana, sem nenhuma formação militar conhecida. Como nas guerras antigas, nem flancos, nem infantaria, nem artilharia, nem arqueiros. Apenas o comum – intimidar pela autoridade, o fuzil, baioneta, cassetete, festim, bala de verdade, bomba de gás lacrimogêneo, um par de algemas.

Vieram os tiros. A correria desenfreada. Maria dos Santos Silva, mãe de Vanessa, pegou-a pelo braço, mais dois filhos, correram pelo fundo, para ganharem o morro e a mata. De repente a menina gritou, caiu, não falou mais nada. A mãe sentiu apenas a roupa encharcada de sangue. Pegou-a nos braços, os passarinhos assustaram-se e começaram a cantar, um canto ainda sonolento, estimulado pelo clarão de lanterna e o fogo das espingardas e fuzis. Vanessa ainda com olhos abertos, cabeça caída para trás, ficou a reparar, sem nada ver, tudo aquilo que não sabia explicar, mas, que sentia medo, agora sem medo, sem dor, sem nada ver, sem nada ser, estava explicado a profecia anunciada na sua inocência.

Deputado Padre Roque, eu e mais outros continuamos a inspecionar tudo. A perguntar, fotografar, colher dados para montar o relatório e apresentar à Câmara dos Deputados para que fosse lido. Nada a se esperar dele. A não ser o de fazer parte, do imenso arquivo morto, no subsolo, mofado e sem providência prática nenhuma. Ao menos seria objeto de discurso.

O discurso é elemento mais importante do deputado, um consolo, o desabafo, de falar o que sente, emitir sua opinião, ser a favor ou contra. O discurso é algo vivo, o discurso tem energia, ele entra no universo e fica guardado para sempre. Mais à frente este e outros vão se somar a outros milhares, igualmente desesperados e podem se juntar numa força bem forte e mudar o ritmo das coisas.

Antenor Duarte era o proprietário de Santa Elina, agiu como devia, reclamou o seu direito legítimo, foi à justiça e ela funciona como vida, a justiça é vida, é cega, age e corta, sem piedade, como uma guilhotina afiada, e julga e faz o que deve fazer, para que se possa viver em sociedade. Ah! Anarquia, ah! Torre de Babel se não fosse a justiça para se colocar limites e conferir direitos.

Viver em democracia não é fácil. Porque cada um tem a sua opinião, cada um tem o seu interesse, cada um quer o seu pedaço da pizza, a coxinha do frango, ao menos o pé, a asinha, a moela, cada um tem o direito de viver com dignidade. Não basta a liberdade. A liberdade é boa. Ir e vir falar o que quiser, xingar, grita, rolar no chão, matar, furtar, tudo pode no limite da lei.

A liberdade sozinha não alimenta. O povo quer mais – quer a igualdade, quer ter chance, oportunidade, quer terra, quer água, quer divertimento, um lugar ao sol, quer pertencer, quer ser importante. E me dá o meu pedaço! Bem ligeiro. O tempo está passando. Não posso esperar muito tempo pelo meu pedaço. Aí surge o conflito. A guerra. A confusão, a briga de foice. E morre gente. Tem gente que leva peia. Tem gente que vai para cadeia.

Ninguém pode dizer que o conflito seja bom. Porque não é. Tem uma coisa – o conflito é necessário. Vou dizer um absurdo – o conflito é a vida. Viver é administrar conflito todo o dia. Dele pode vir a guerra. A gente só vê um lado da guerra, o sofrimento, a miséria, a degradação, os campos de refugiados, as prisões absurdas, as torturas, as mortes. Tudo isto é triste. Comovem corações, os olhos rasos d’água. O outro lado da guerra a gente não vê. A necessidade comercial – tem gente que ganha muito dinheiro com ela. Tem gente que ganha eleição com ela. Tem gente que dança e canta enquanto o outro se esfacela. Tem gente que serve ao carrasco julgando-o bom, justo e puro.

A guerra é um espetáculo. Como este conflito de Corumbiara. A gente só vê o lado triste. A Vanessinha morta, ingênua e linda. Além dos outros tantos que apanharam, levaram murro nos olhos, que levaram chicotadas no lombo e foram presos. Tem muita coisa escondida. Tem o lado político por trás de tudo isto. Tem o movimento que ganha dinheiro internacional para promover estas lutas. Tem os mentores intelectuais de uma nova ordem política no Brasil. Tem o discurso forte da esquerda anárquica. Mesmo aquele discurso velho, o antiquário da política soviética, que foi um fracasso, mas, tem muita gente que gosta daquilo que não deu certo.

Como Corumbiara vieram outros conflitos, os de Eldorado dos Carajás/96, as contendas no Vale do Paranapanema, as destruições de laboratórios de pesquisas genéticas. Porque os movimentos sociais não aceitam a evolução da genética nas sementes. O Brasil se debate com o banditismo, com o crime organizado, com o colarinho branco, com o jogo do bicho, com bingo, o jogo eletrônico, o tráfico de drogas, com a prostituição infantil, com as rebeliões nos presídios – e tudo isto é um estopim de pólvora. Tudo isto tira o sono. Por trás de tudo tem um outro lado muito feliz e satisfeito.

Estou escorregando na casca da banana. Tirando o olho da mira. Estou saindo do foco. Estou sentindo o cheiro da brilhantina. O foco é o meu relatório. O que vi na boca noite, em Nova Guarajus, quando visitei Maria, que tinha há pouco enterrada a filha, que não queria falar, que tinha medo, e todo mundo se escondeu na Vila.

Entramos nela como fantasmas, batendo nas portas fechadas, até que uma se abriu e nos levou à casa de Maria. E depois de 8 anos voltei à Nova Guarajus para visitá-la. Como o tempo coloca tudo no lugar. Ela bem calma. Viúva pela segunda vez. Casa limpinha, piso de cimento encerado, geladeira, radiola. O passado passou, não queria lembrar, não pegou terra, não foi mais atrás de acampamento. Vive a sua vida de cada dia, pequena e simples, sem sonhos mirabolantes, a não ser o sonho da noite, este que vem por conta própria e nos faz delirar.

Enquanto isto no Ginásio de Esporte de Colorado centenas de presos, pobres agricultores, sujos, sentados, desiludidos, corações despedaçados. Enquanto o INCRA de tão grande, ficou paralisado, como um imenso dinossauro, passo lento, uma piscadela demora meses. De longe assiste tudo, impassível, a prometer cidadania. A escrever livretos sobre a renda no campo, necessária ao colono. O INCRA que ainda não encontrou o modelo de assistência técnica verdadeira e necessária. O INCRA que assiste de camarote – o nascer e a morte dos assentamentos. Milagrosamente eles se acabam, transmutam-se os objetivos. As pessoas que tanto lutaram pela terra desiludem-se, com a falta de apoio, com a falta de tudo, com o primitivismo da agricultura familiar, vendem o lote por trinta moedas, por uma moto, uma casa na cidade e se vão para as periferias. A encherem o que já está cheio, de mais conflitos, mais problemas.

Enquanto outros, mais destemidos transformam-se em novos líderes e saem por aí a pregarem contra a propriedade privada, contra o latifúndio, com a engenharia genética, contra o agronegócio e ganham fama e o ciclo continua enquanto o homem existir na terra.

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